Afaste de nós esse cálice
- Cinthia Cicilio
- Feb 12, 2018
- 3 min read

O Jornal “The Guardian” recentemente divulgou uma série de relatos de funcionários da ONU, que sob anonimato, expuseram a cultura de impunidade que permeia o ambiente de trabalho da Organização Mundial mais renomada e com agenda mais ambiciosa já até então criada.
A ONU – Organização das Nações Unidas – foi uma instituição idealizada em 1919 por Woodrow Wilson, que propôs os 14 pontos base para o estabelecimento e manutenção da paz no mundo, e que reorganizariam as relações internacionais após os conturbados anos da Primeira Guerra Mundial, na previamente chamada “Liga das Nações”. A essência da extinta Liga, e da atual Organização das Nações Unidas, é a de ser um espaço onde o rumo das ações dos Estados e seus cidadãos converge para objetivos comuns, encontrados através do diálogo e soluções em um ambiente de cooperação.
Todavia, a ONU, que em sua Carta de fundação expressa “reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla” tem sido exposta como sendo um cenário completamente oposto, onde casos de opressão, principalmente, contra mulheres, as quais têm sofrido assédio e abuso sexual, uma situação que parece ser comum e, pior, encobertada pela Organização em seus diversos escritórios e bases de paz espalhados pelo mundo.
Em um dos casos recentemente declarados ao The Guardian, a vítima relata que mesmo com comprovação obtida por exames médicos sobre o crime de assédio que sofreu, os órgãos de investigação interna da ONU alegaram não terem provas suficientes para confirmar a denúncia. Após encerrar o caso sem resolução, a vítima ainda perdeu o trabalho, seu visto e passou diversos meses no hospital por conta de stress pós-traumático.
Já os acusados, que em sua maioria ocupam altos cargos na hierarquia da Organização, mantêm-se em suas posições e, justamente pelo seu poder de influência, e pelos seus privilégios adquiridos ao longo da carreira, como imunidade diplomática, é que eles conseguem se safar sem punição aos casos de assédio, que na maioria das vezes estão relacionados a assédio com o intuito de obter benefícios de jovens profissionais em troca de indicações para promoções de cargo na ONU.
Além dos casos que ocorrem nos escritórios da ONU, já houve inúmeras denúncias contra as missões de paz da ONU, acusadas de abuso sexual e exploração contra as moradoras locais dos países em que há ocupação de paz, como no Haiti e na República Central Africana. Nesses países, além das questões apontadas acima, que dificultam a punição dos criminosos, ainda há o agravante de os sistemas judiciários locais serem debilitados, o que permite com que as situações de assédio continuem para com populações que já estão vulneráveis pelos problemas ambientais e políticos presentes em seus países.
A impunidade na ONU reflete não só um sistema de investigação despreparado para análise de tais situações, dado que de acordo com relatos feitos ao The Guardian, testemunhas-chave de cada caso deixaram de ser entrevistadas, e transcrições foram escritas com diversos erros nos inquéritos, os quais, alguns, foram até mesmo vazados, como também reflete o cenário de misoginia que é enfrentado por todas as mulheres ao redor do mundo, seja em seus ambientes de trabalho, casa, ou no espaço público.
A falta de exposição do tema na ONU, que teme manchar sua imagem com escândalos e prefere a cultura do silêncio à cultura da tolerância zero, é um reflexo, também, da visão machista que esses órgãos tradicionais e que os legislativos e judiciários de muitos países ainda têm.
Apesar da promessa de António Guterres, secretário-geral da ONU, em dar prioridade ao combate ao assédio sexual, os exemplos a serem seguidos devem ser de ações concretas, de países vanguardistas no tema, como a Austrália, que desde 1964 tornou o assédio sexual em ambiente de trabalho um crime.
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